"A elegância de morrer" (crônica): 12/01/2021

12/01/2021 18:28
A elegância de morrer
 
O olhar manso do tio alcançou, em meio aos objetos da recém-falecida sobrinha, quatro biscoitinhos de maisena, embalados num guardanapo, e uma banana prata prestes a apodrecer na gaveta. Logo avisou à mãe, que estava perdida no quarto, procurando achar algo de importante em meio à desgraça repentina.
O tio não poderia deixar a fruta estragando ali, porém, sem querer, teria desvendado um grande tesouro da sobrinha: uma pequena guloseima escondida na gaveta pra comer mais tarde, sem que ninguém soubesse. Em momento algum pensou em consumir aquelas bolachas. Tampouco a bananinha. Sentiu, talvez, admiração e dó ao mesmo tempo pelo suposto gesto humilde, porém secreto, da sobrinha. Tudo indicava que era uma moça demasiadamente simples, assim como se costuma pensar sobre os que desencarnam, sobretudo, os mais recentes.
Teria sido esse um caso de morte revelador e admirável: como existem pessoas simples neste mundo! Mas por trás do palco do pensamento, havia também uma mente articulada e determinada a não deixar vestígios que pudessem denunciar um ser cheio de vícios. Por isso, todos os chocolates, balas e amendoins foram devorados antes, deixando apenas o necessário a ser revelado no instante mais esplendoroso da vida: a passagem.
(Kátia Surreal)