"Entre morrer ou deixar de existir" (crônica)

09/03/2021 23:02

Entre morrer ou deixar de existir

 

            Eis o aparente paradoxo em que eu e com certeza você também se encontra ou que ainda haverá de se sentir parado e balançado ao mesmo tempo. As crenças sobre a vida após a morte em nada me importam neste momento, e não porque eu seja uma pessoa descrente. Aliás, sempre fui de crer nas pessoas, na vida e, inclusive, para além daqui, deste plano.

            Entretanto, o que ora me inquieta diz respeito à atual conjuntura hiperbólica de vida e morte. Penso a todo tempo que, a qualquer instante, irei contrair a COVID-19. Sinto-me, aliás, nos sentimos tão vulneráveis, apesar de certa dose de rigor tomada com relação à higiene básica e ao isolamento social. Algo que, como todos já estamos cansados de saber, não abrange todas as camadas sociais.

            Mas não é só isto, o perigo de ir à óbito por causa do Coronavírus, que me faz escrever. Em meio às circunstâncias, podemos morrer antes de fome, desespero, desencanto, melancolia, pranto... Pior: podemos deixar de existirmos. Essa é a morte mais grave de todas. Porque morrer, por qualquer razão que for o mal, uma hora iria acontecer mesmo. Basta olharmos o que fizeram e faz da gente, do mundo inteiro, durante tanto tempo... De toda forma, assevero que a preservação da vida tem a sua importância máxima, apesar de tudo. É o que temos e, por ela, devemos lutar até o fim. Mas, não podemos ignorar o fato de que só existe uma verdadeira morte à nossa espécie, e que é a mais trágica de todas: deixarmos de existir, sobrevivendo com apatia, conformismo e submissão.

            Ainda há algumas horas, discutia com o partido em que milito sobre a recente situação política. Para ser mais exata, conversávamos sobre um texto o qual relata acerca da tendência de certas visões políticas que associam a atual pandemia ao “novo normal”, e que, talvez, precisaremos conviver com este mal daqui em diante. Segundo consta, é provável que o Coronavírus venha a ser classificado como gripe sazonal ou de característica endêmica. Assim, iríamos nos acostumando com a nova realidade mundial. Isso não seria algo inédito se pensarmos que já sobrevivemos em meio a todas as tragédias sociais e ambientais, provenientes do capitalismo, como o desmatamento, o efeito estufa, a desigualdade etc. O que ocorre no mundo hoje é mais uma prova de como as regras do capitalismo jamais irão pôr a vida humana à frente de seus interesses mercadológicos.

            Compreendamos de uma vez: há centenas de gerações as coisas já haviam se tornado mais relevantes do que as pessoas. Assim, o luxo, o lucro e, agora, o luto são os deuses da vez. Mais uma vez. Contudo, diante disso tudo que estamos vivenciando, eu me questiono se ainda é possível engolir só mais esta? Mais de mil mortes por dia no Brasil, numa progressão infinitamente desenfreada! Será que, mesmo assim, continuaremos a pensar que a solução seja ainda não morrer? Optaremos por morrer aos poucos e intensamente, junto ao inevitável colapso nervoso do sistema cujo fim, certamente, será da forma mais desastrosa da história mundial?!

            Sei que irei morrer e você também. Daqui a algumas horas, dias, semanas... Cedo ou tarde (não tanto assim), essa é a tendência. No entanto, creio que tudo o que eu não poderei aceitar neste contexto é deixar de existir, entregando-me à apatia maliciosa que ora se instala no mundo. Enfim, entre morrer ou deixar de existir é uma escolha. Difícil, difícil, difícil, porém vital...

(Kátia Surreal)